quarta-feira, 15 de setembro de 2010

DEUS EX MACHINA


“Por uma fração de segundo experimentei talvez aquela completa clareza que, segundo afirmam, é dada ao epilético conhecer”
HENRY MILLER


Se toda essa capa de matéria plástica que me revesti não fosse de algo tão frio talvez eu suportasse mais algumas horas. Esse cotidiano metálico nos mata com promessas de dias melhores, sem nenhuma trincheira, sem nenhum desastre natural, sem homens que explodem em uma carnificina santa; guardamos tudo nessa grande fotografia retalhada, brilhante e de apenas duas cores, mesmo que espere alguns dias bons não se esqueça que sempre vai existir ao fundo esse painel fotográfico embebedado de toda impiedade e desumanidade possível que nos leva aos íncubos da vida onde rasgar, trucidar a carne era um triunfo, antes de sair não se esqueça de trancar a porta e cortar todas as conexões indesejadas, verifique se não esta em anexo nenhum dispositivo de explosão temporizado, ensope todo o seu corpo com liquido anti-séptico para não ser contaminado por nenhuma bactéria devoradora de carne humana que pode acabar com você em poucas horas, não fale ao telefone você corri o risco de ficar feliz por alguns minutos e se torturar por várias horas, todas as pessoas que conhece acabam fazendo parte da criatura que você é ,não se esqueça de amputar as partes necrosadas, elas cheiram mal e podem te matar. Fique calma todos ainda dormem e todos os sorrisos que encontrar serão de adesivos baratos que não descolam com a saliva e não amarelam com o tempo. Sempre traço a rota mais curta até a minha casa para evitar novas fotografias, precisamos de tudo isso, de adesivos para sobrepor todas as fotos indesejadas, com imagens de pequenos animais peludos e desastrados, colinas com cabanas floridas, nuvens, dentre outros mimos estéticos de nossos dias, ninguém coloca como plano de fundo crianças soterradas, ferros retorcidos, teste de air-bag, cirurgias mutiladoras, produção de longos parafusos usados em linha férrea, ninguém comemora a primeira defecada do filho, comemoram as primeiras palavras, guardam o primeiro sapato, mas não a primeira fralda plástica, registram aniversários, nascimentos, formaturas, mas nunca uma surra, uma sentença médica, a extração do primeiro siso, a violação por uma circuncisão, a primeira urina por pesadelos. No final do dia não vai conseguir mais olhar para mim, vai achar graça quando atirar em alguma coisa e vamos acabar em grandes fotografias imóveis, frias e sintéticas sem gosto nem cheiro. A única coisa que pode fazer é ficar cara a cara com isso e escolher o melhor lugar para pendurá-las, organizando de uma forma suave e ímpia e garantindo que não fiquem cobertas durante a noite.

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